quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Laranja de Umbigo

E que tal este texto do jornalista David Coimbra...


A vida praiana é superestimada. Tenho convicção disso desde o ocorrido com a laranja de umbigo do Sérgio Baixinho. Naquela época, quando chegava o verão, as mulheres iam para a orla e nós ficávamos no IAPI. Era estranho. A orla repleta de gurias e caras da 24 de Outubro, e a gente comendo melancia em Porto Alegre. Mas que bá.

Então, nossa grande meta, logo que janeiro aparecia na curva, era passar pelo menos alguns dias na orla. Mais precisamente em Quintão, onde veraneava um fagueiro grupo de meninas do bairro, destacando-se uma loirinha que me fazia flutuar com seus olhares esverdeados.

Inventamos na vila que iríamos em excursão com o Huracán, o nosso time. A dupla Gre-Nal não excursionava para a Europa todos os anos, em pré-temporada? Pois o Huracán iria excursionar para a orla a fim de desafiar os times praianos daqueles fru-frus da 24 de Outubro.

Pegamos a nossa bola de couro número 5 quase nova, pegamos o brioso fardamento do Huracán, enfiamos tudo nas mochilas e fomos para a freeway pedir carona, que ninguém tinha dinheiro para ônibus.

Foi o nosso primeiro erro. Você, que não é tanso, sabe perfeitamente que não se chega a Quintão pela freeway. Só que nós éramos tansos.

Sábado, bem cedinho, lá estávamos, um time inteiro à beira da estrada, dedão apontando para o Atlântico. Em duplas, porque com mais de dois é impossível conseguir carona. Marcamos encontro em Tramandaí, na Emancipação. Até o meio-dia, chegaram todas as duplas. Agora, Quintão!

Como se vai mesmo a Quintão? É perto. Perto onde? Alguém raciocinou, surpreendentemente: é tudo orla mesmo, logo, se formos margeando o oceano, em breve chegaremos a Quintão. Vamos pela arelha da pralha? Vamos! Arelha da pralha, arelha da pralha!

Fomos.

No fim da tarde, parecíamos aqueles caras perdidos no deserto, nos arrastando pela areia estuante, vergando sob o peso das mochilas. Paramos, suando, bufando. Será que aquilo era Quintão? Vamos perguntar para aquele praiano que vem lá de sunga.

– Ei, isso aqui é Quintão?

– Quintão??? Aqui é Presidente!

Presidente? Que lugar era aquele, Presidente? Quintão
ficava muito longe?

– Pô! – admirou-se o praiano de sunga. – Quintão fica lá para trás!

Para trás???

Estávamos caminhando para o lado oposto. Mistérios da orla. Decidimos ficar ali mesmo. A noite já chegava e nós em Presidente, sem comida, sem dinheiro, sem jogo de futebol e sem as gurias. Pelo menos tínhamos duas barraquinhas para dormir.

Começamos a armar as barracas. Então, constatamos que o Fernando havia esquecido as estacas de uma delas. Maldição! O Fernando levou alguns cascudos, enquanto tentávamos armar a barraca com pedras e pedaços de pau. Não deu certo.

Alguns cogitaram de dormir na areia mesmo, sob o céu azul-escuro. Quisperança! Com a noite, passou a fazer um frio canadalesco. Não dava para sair da barraca, da única e pequena barraca de que dispúnhamos. Ficamos a noite toda enfiados na barraca, pinicando com a areia, sujos, fétidos, esfomeados, resmungões.

Um de nós, justamente o Sérgio Baixinho, o da laranja de umbigo, tinha um radinho a pilha. Dele nos valemos para tentar descobrir as horas. Se fosse mais de cinco da manhã, metade de nós iria para fora, desafiar o frio. O Sérgio ficou escutando, o radinho colado ao ouvido. O som saía baixinho, chiado, só ele ouvia. “Ó: tá dando uma do Benito de Paula… Seria muito bom, seria muito legaaaal…” Nós na expectativa. “Ó: tá no fim. O cara tá falando”. Tensão, tensão. “Vai dizer as horas!” Angústia. “Meia-noite e oito”.

Meia-noite e oito, meu!

Foi uma noite realmente, realmente comprida. Pela manhã, estávamos tortos e famélicos. Foi então que surgiu a laranja de umbigo. Não uma; várias delas. Um grupo de praianos se compadeceu do nosso estado lamentável e nos presenteou com uma dúzia de enormes, reluzentes e suculentas laranjas de umbigo, as mais atraentes laranjas de umbigo da minha vida.

Devoramos aquelas laranjas ao mesmo tempo que desmontávamos a barraca, ansiosos para voltar ao recôndito do cimento armado de Porto Alegre.

Foi quando aconteceu. Meu amigo Sérgio Baixinho, meu grande amigo, apesar de seu pequeno tamanho, é daqueles caras que chupa laranja. Ele não descasca a fruta – corta um tampão e a suga. Coisa que eu desconhecia. Pois ele cortou o tampo da laranja de umbigo lá dele, sentiu o primeiro gostinho refrescante e doce do sumo e pensou: vou deixar minha laranja para depois que desarmarmos a barraca, aí vou chupá-la descansado, olhando para o mar… E depositou a laranja sobre uma pedra. Coisa que eu também desconhecia.

Nós naquela atividade, felizes pelas laranjas que acabáramos de devorar, de repente olho para baixo e vejo aquela laranja sem um pedaço, parecendo meio emurchecida e me deu uma vontade de pegar aquela laranja e atirá-la com toda a força no mar. Não sei por que tive aquela vontade, era só desejo de jogar algo longe, na água, podia ser uma pedra, podia ser um disco long play ou um gato morto, mas era a laranja de umbigo do meu amigão Sérgio Baixinho.

Peguei a laranja. O Sérgio Baixinho viu e pensou: será que esse cara quer comer a minha laranja? Não chegou a protestar. Não deu tempo. Joguei o braço para trás, apoiei-me num só pé, o Sérgio Baixinho percebeu que eu ia arremessar a laranja dele ao mar, arregalou os olhos, começou a sacudir os braços, desesperado, mas não falou nada, e eu não o via, e fiz pontaria, e ele se agitava, e minha mão veio lá detrás, lá detrás, e o Sérgio:

– Nãããããããããããããããõoooooo!

Um grito de dor. Da mais profunda dor.

Tarde demais. Eu já havia, miseravelmente, lançado a laranja de umbigo do meu amigão Sérgio Baixinho na terceira onda da rebentação da praia de Presidente. Fiz isso com meu amigão. Que triste. A vida praiana é superestimada, de fato.

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