segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Amores de Verão: ombro





Depois de muito ponderar, Atílio decidiu:

Vou lamber esse ombro.

Considerou que era uma decisão madura, refletida e, por que não dizer?, sensata. Havia meses que desejava lambê-lo. Ao ombro. E também ao restante de sua proprietária, claro. Agora ambos, ombro e proprietária, estavam centímetros à sua frente. Atílio, a dona do ombro e todos os outros funcionários do escritório tinham sido reunidos pelo chefe, que fazia um comunicado qualquer. O chefe falava no meio da sala, os funcionários ouviam de pé.

Quer dizer: ouviam é força de expressão. Atílio não ouvia nada. Sua atenção, sua alma, seus sentidos tinham sido monopolizados pelo ombro dourado e nu que se oferecia a meio palmo de seu queixo. Atílio analisou-o acuradamente. Seguiu com o olhar a curva suave que descia rumo ao braço. Despencou quase até o cotovelo. Subiu de volta. Deslizou pela depressão formada pela omoplata. Escalou o pescoço delgado e elegante. Retornou outra vez para o centro do ombro adorado. Inalou seu perfume. Oooh. Ela era divina.

Atílio apoiou o peso do corpo em um só pé. Diminuiu ainda mais a distância entre ele e o ombro. Tão lindo, macio e brilhante, tão apetitoso... Atílio sentia-se emocionado. Tamanha perfeição não podia ficar relegada. Um ombro assim perfeito fora criado para dar prazer. Sim, devia lambê-lo. Sim! É o que iria fazer.

Mas, pensando bem, lambê-lo seria a melhor opção? Por que não morder de uma vez? Lógico! Com uma boa mordida, o mordedor capta sensações através não apenas dos dentes, mas também da língua e dos lábios. Serviço completo. Morder, esta é a solução. Morder! NHAM!

Atílio chegou a abrir a boca, chegou a sentir a textura da carne tenra nos molares. Até lembrar de um único senão: uma mordida talvez fosse agressiva demais.

É.

A dona do ombro pode se assustar, gritar, passar para o desforço físico, o que provavelmente não seria bem compreendido pelo pessoal do escritório. Seria um escândalo. Os colegas o chamariam de tarado, o chefe ficaria furioso, ela o acusaria de assédio sexual, e sua mulher, que agora estava na praia com seu filho Cuquinha, descobriria tudo em menos de 12 horas e se separaria dele. Sua vida acabaria ali, com uma simples mordiscada. Não, melhor descartar a mordida. Atílio congratulou a si mesmo pelo seu bom senso. Como uma ideia de tal forma espaventosa pôde germinar em seu cérebro sempre sensato? Só podia ser o verão. O verão fazia isso com ele. O maldito verão com suas minissaias, suas miniblusas, seus ombros expostos.

Aiaiai.

Quem sabe um beijo? Iiiisso, um beijo doce e cândido. Um beijo é um carinho. Impossível recriminar um beijo. Já estava vendo a dona do ombro a suspirar. Ela exclamaria assim:

– Ó!

Atílio aprontou o biquinho. Curvou a nuca. Ia beijar. Mas cogitou: peraí, um beijo em uma superfície lisa como um ombro é tão-somente um roçar de lábios no tecido. Pouco prazer para tanto risco. Além disso, será que um beijo é de fato totalmente seguro? Afinal, há que se computar o fator surpresa. Poucas mulheres estão acostumadas a receber beijos no ombro durante reuniões de trabalho. O inusitado da ação talvez a assuste. Então, que seja uma lambida mesmo, um saudável intermediário que não será agressivo como uma mordida, nem insosso como um beijinho.

Lamber! Schlep!

Atílio sorriu, antegozando o prazer. Começou a salivar. Tirou a linguona para fora. Respirou fundo. E...

...e ela se virou. Virou-se de frente para ele, para seu imenso espanto. Sorria. Parecia feliz. Aproximou-se dele. Cada vez mais, cada vez mais. E... o beijou! Beijou-o nas faces. Uma, duas, três vezes. Sorria, ainda. Falou, enfim:

– Parabéns, Atílio!

Hein? Parabéns? Ele arregalou os olhos. Estava pasmado. Olhou no entorno. Todos sorriam, observando-o. O chefe sorria também.

– Uma bela promoção – a frase saiu do rosto sorridente de um dos colegas.

Promoção? Que promoção? O chefe! O motivo da reunião! Ele, Atílio, tinha sido promovido! Todos o cumprimentavam. Parabéns, parabéns. Atílio sentiu-se despertando. Sorria, agora. Agradeceu a todos. Agradeceu ao chefe. Voltou a olhar para ela. Que continuava sorrindo. Um sorriso diferente de todos os que lhe oferecera até então. Um sorriso em que dançava uma luz maliciosa, uma luz que, Atílio queria crer, era de promessas.

– Parabéns – repetia ela, sem parar. – Parabéns.

Devia ser mesmo uma belíssima promoção.

– Que é isso... – dizia ele, satisfeito.

Sorriu para ela, para a luz em seus olhos. Deixou seu olhar passear mais uma vez por aquele ombro dourado e nu. E agradeceu a Deus por ser verão.

* Texto publicado por David Coimbra, no Jornal Zero Hora em fevereiro de 2002.

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