domingo, 23 de março de 2014

O matador arrependido nos leva aos labirintos da insanidade




Da primeira à última das 291 páginas de Memórias de uma Guerra Suja (Topbooks), dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, o leitor tem a sensação de que está sendo guiado por labirintos até agora protegidos ou dissimulados da história recente do país. É um mergulho em uma época de intolerância, crueldade e mentiras, muitas mentiras. Em alguns momentos, fica a sensação de que o ex-delegado Cláudio Guerra, um dos homens de um dos tantos esquadrões da morte da ditadura, entrevistado pelos dois jornalistas, se perde em alguma curva, por vezes é traído pela memória, mas na maior parte do depoimento revela nomes, datas, operações, execuções de pessoas da esquerda ou suspeitas de pertencerem a movimentos, corpos de militantes incinerados nos fornos da Usina Cambahyba, de Campos (foto), inocentes condenados por estarem no lugar errado, assassinatos. Seria preciso uma imaginação sem limites para citar tantas datas e episódios, muitos deles checados e confirmados pelos repórteres. É preciso segurar bem firme o fio para fazer o caminho em segurança.

- Eu era convocado e matava – diz o torturador e hoje pastor evangélico, acometido de uma crise de consciência enquanto estava doente em um leito de hospital do Espírito Santo a tal ponto que decidiu revelar detalhes do período em que tinha licença para matar, deve ter percebido, nestas últimas semanas, que mesmo na democracia não é tão fácil assim romper as barreiras do silêncio. Memórias de uma Guerra Suja é um livro com alto potencial de provocar escândalos e investigações, mas qualquer pessoa medianamente informada já viu que ele está sendo praticamente ignorado. A não ser pelos blogs e por alguns sites, recebeu apenas pequenas notas, algumas delas reticentes, cheias de cautela, como se ainda vivêssemos sob a censura da ditadura. No país em que até uma Comissão da Verdade foi construída a duras penas e com sérias limitações, é evidente que um livro assim provocaria incômodos e inquietações. O surpreendente é o medo que ele parece provocar – mesmo depois de décadas do fim da ditadura.

Em meio ao labirinto e ao mergulho nos porões, o leitor entende por que muitos estão querendo que o livro seja logo esquecido. Além dos nomes e funções de líderes dos grupos que torturavam e matavam, das patentes dos oficiais dedicados à tarefa de extermínio, Cláudio Guerra fala de jornalistas e de empresas poderosas de comunicação que se valiam da ditadura. Trocavam apoio por favores. Quando a situação ficava incômoda, os comandos especializados explodiam alguma bomba na empresa ou na residência dos donos – e responsabilizavam a esquerda. Assim, o empresário recebia uma espécie de imunidade e acabava com eventuais desconfianças de seus pares. O assassino arrependido, que diz nunca ter torturado (era a única deformação que o incomodava), dá nomes, datas e endereços destas operações.

Além da política de tortura e extermínio, da espantosa autonomia que certos líderes militares tinham para determinar se alguém devefia viver ou morrer, impressiona a construção de mentiras para tirar a atenção de certas ações ou para incriminar os grupos da esquerda. Cada operação tinha sempre dois grupos responsáveis: um pela ação e outro pela construção da mentira, com requintes aprendidos de agentes estrangeiros, e que parte da imprensa da época abraçava com entusiasmo (e que, estranhamente, muitos brasileiros repetem como verdade ainda hoje, apesar de todos os desmentidos). Neste ponto, o Riocentro foi o auge disso – e só não deu certo, do ponto de vista dos militares, porque suas equipes abusaram da incompetência.

Felizmente para milhares de pessoas que estavam no Riocentro e para a oposição que receberia a culpa depois, foi um desastre completo. Mas a leitura de tudo o que estava planejado por grupos que não aceitavam o fim da ditadura e das consequências ainda tem o poder de atordoar. E se a incompetência não tivesse agido? Dispostos a complicar os sinais de abertura, grupos dissidentes da própria ditadura organizaram uma série de explosões no país (a carta bomba na OAB, por exemplo, que matou uma secretária, a tentativa de assassinato de Leonel Brizola, a destruição de bancas de revistas, entre outras ações) e a principal foi a do Riocentro.

O espetáculo reuniria milhares de pessoas para um show com inúmeros artistas, quase todos eles envolvidos na luta pelo fim do regime. Equipes orientadas pelos coronéis Freddie Perdigão e Carlos Alberto Brilhante Ulstra e o comandante Vieira decidiram então causar uma tragédia e culpar a esquerda. Cada grupo recebeu tarefas diferentes: um detonaria as bombas, outro dispensou as equipes de socorro e fechou as portas de saída do estádio para aumentar o caos, um terceiro pichou placas de ruas e paradas de ônibus com siglas de grupos da esquerda para responsabilizá-los, outro (do qual fazia parte Cláudio Guerra) chegaria depois da confusão e começaria a prender líderes esquerdistas que estavam no local. A bomba, que seria colocada sob o palco, tinha alto poder destrutivo. Imaginem o caos: a explosão, o desespero, as saídas bloqueadas. Nem dá para calcular quantos morreriam.

Tudo deu errado. O sargento Rosário, especialista em explosivos, e o capitão Wilson Machado – com a bomba no colo – não perceberam que estacionaram o Puma debaixo de linhas de alta tensão. A carga elétrica fechou o circuito e houve a explosão(foto). Rosário morreu, Wilson resistiu e ainda vive. O desastre abriu caminho para mais mentiras. No primeiro inquérito, disseram que a bomba tinha sido colocada por esquerdidas entre a porta e o banco do carona no breve momento em que os oficiais deixaram o carro. O processo seguiu várias etapas e os responsáveis nunca foram punidos.

Há pouco, em entrevista emocionada à imprensa, o ex-deputado Carlos Araújo, militante de esquerda, tão torturado que chegou a tentar o suicídio, disse que só um indivíduo acometido de grave doença mental é capaz de torturar vítimas indefesas. “Não tenho dúvidas de que a ditadura recrutava pessoas assim”, disse o ex-marido de Dilma Rousseff. Quem lê Memórias de uma Guerra Suja concorda com ele. Respire fundo, segure a náusea e encare as 291 páginas. São raros os momentos em que um criminoso arrependido deixa as sombras e confessa seus pecados. É a confissão de alguém que participou de tudo – e que ensina muito sobre o passado do país em que vivemos.

É uma viagem à época em que parte do Brasil foi dominada pela insanidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário