segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Missoula: a cidade universitária sombria

Em um curto período de quatro anos, entre 2008 e 2012, a pequena Missoula, cidade universitária de Montana, cercada de montanhas e rios de águas claras cheias de trutas, o sistema de justiça dos Estados Unidos registrou 350 casos de agressāo sexual – muitos deles, sem processos e sem puniçōes. O ambiente conservador, unido ao orgulho por ter na cidade um dos times mais badalados do futebol universitário, berço de muitos futuros ídolos do esporte, ajudou a acobertar muitos dos casos, proteger jogadores envolvidos nos casos e multiplicar o sofrimento das vítimas.

É essa história de agressōes, cumplicidades, omissōes e, acima de tudo, drama, que o jornalista Jon Krakauer desvenda no livro Missoula(Companhia das Letras), imperdível para quem valoriza uma competente investigaçāo jornalística. E Krakauer é mestre nisso.

Ele subiu, sofreu e quase morreu numa trágica aventura de turistas, montanhistas e curiosos no Everest, em 1996. Foi um dos sobreviventes. A história está no livro No Ar Rarefeito. Comoveu-se, pesquisou e refez a surpreendente aventura do jovem Christopher McCandless, que logo depois da formatura tudo e partiu para uma viagem sem volta. O relato é contado na obra Na Natureza Selvagem. Entrou na vida dos mórmons em Pela Bandeira do Paraíso e investigou até esclarecer, apesar da cortina de segredos e proteçāo das forças armadas, a morte de um dedicado soldado norte-americano vítima de fogo amigo no Afeganistāo. Tudo está em Onde os Homens Conquistam a Glória. Em Missoula, ele utiliza mais uma vez este talento do grande repórter para contar os segredos da cidade universitária e das próprias deficiências do sistema judicial do país.

O mais surpreendente para o leitor brasileiro é ver que muito do que Krakauer conta sobre uma pequena e idílica cidade de Montana serve para outros países. A mesma cortina de cumplicidade, de omissōes, de falhas processuais, de preconceitos que aos poucos desmoralizam a vítima e protegem o culpado. O roteiro é o mesmo: além da violência absurda do estupro, a mulher muitas vezes enfrenta uma sequência de outras agressōes. O desconforto da denúncia, o olhar nem sempre respeitoso de quem ouve o depoimento, o andar do processo, o confronto com o agressor e, mais grave, a tentativa de levar a vítima ao descrédito. Foi o que aconteceu há pouco com aquela garota agredida por 33 homens, no Rio. Em poucos dias, ela passou a ser desacreditada. E ficaria assim se uma delegada, diante da repercussāo, nāo recolocasse tudo nos eixos.

Missoula esmiuça tudo isso, com base em entrevistas, pesquisas e leituras de processos. O livro incomoda, provoca algum desconforto em certos episódios, mas é outra daquelas obras indispensáveis de um dos grandes repórteres do nosso tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário